Síndrome de Kaká
por Renato K. Silva, doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.
No primeiro domingo do Campeonato Brasileiro da Série A 2016, o meio-campista do São Paulo, Lucas Fernandes, 18 anos, fez um gol cobrando falta, na vitória do seu time sobre o Botafogo por 1 x 0. E a cena da comemoração já virou um déjà vu sobretudo nos estádios brasileiros: ajoelhar-se no gramado e levantar os braços para o céu com os dois indicadores em riste – símbolo de agradecimento a Deus. Na imagem, há o olhar em plongée de Alan Kardec para o autor do gol, no primeiro plano, e uma faixa com o desenho de Raí, no segundo plano.
No primeiro domingo do Campeonato Brasileiro da Série A 2016, o meio-campista do São Paulo, Lucas Fernandes, 18 anos, fez um gol cobrando falta, na vitória do seu time sobre o Botafogo por 1 x 0. E a cena da comemoração já virou um déjà vu sobretudo nos estádios brasileiros: ajoelhar-se no gramado e levantar os braços para o céu com os dois indicadores em riste – símbolo de agradecimento a Deus. Na imagem, há o olhar em plongée de Alan Kardec para o autor do gol, no primeiro plano, e uma faixa com o desenho de Raí, no segundo plano.
Lucas Fernandes comemorando gol |
Em 2001, um jogador recém ingresso ao time profissional do São Paulo, também aos 18 anos, marcou dois gols contra o mesmo Botafogo, no Morumbi, na final do Torneio Rio-São Paulo, seu nome: Ricardo Izecson dos Santos Leite, futuramente conhecido como Kaká.
Desde então passaram-se 15 anos. A grafia do nome de
Ricardo Izecson passou de Caca para Kaká. Em 2002, Kaká foi convocado por
Felipão e fez parte do último título Mundial da Seleção Brasileira, na Copa
Japão-Coreia. Após a final contra a Alemanha, Kaká que não jogou uma única
partida naquele mundial, aparece sendo carregado pelo zagueiro Lúcio. Em sua
camisa há os dizeres que a partir de então iriam fazer parte de sua carreira
como uma sombra: “I belong to Jesus”, "Eu pertenço a Jesus".
Lúcio e Kaká na final da Copa de 2002 |
Após o mundial, Kaká ganhou a Europa atuando com destaque com a camisa do Milan e
tornou-se o último atleta brasileiro a ganhar o título de melhor jogador do mundo,
em 2007. O troféu de melhor jogador do mundo, concedido pela Fifa, Kaká doou
para a congregação que era filiado à época, a Igreja Renascer em Cristo, gesto que materializou sua devoção à Teologia da Prosperidade, segmento caro
ao neopentecostalismo brasileiro que, sumariamente, enxerga as conquistas
pessoais como índice terreno da glória de Deus operando na vida do devoto.
Na segunda metade dos anos 2000, Kaká era um atleta em
pleno voo. Com bons rendimentos dentro e fora do campo ele tornara-se “o genro”
que toda sogra gostaria de ter: bonito, cristão, bem-sucedido, abstêmio, um
exemplo de filho, atleta, casou virgem, marido fiel, pai etc., Mais parecia um
príncipe encantado de contos de fada do que o típico jogador brasileiro até a
década de 1990. Alguns destes, atletas com problemas dentro e fora de campo:
encalacrados com pensões alimentícias, problemas com álcool, drogas, poliginia
etc.,
Kaká fazendo campanha contra a prostituição |
Em 2009, a Fifa
baixou uma portaria proibindo atletas de fazerem menções, durante partidas
oficiais, a qualquer credo religioso. Essa medida da Fifa visava especialmente
os atletas brasileiros que vinham praticando proselitismo religioso de maneira
sistemática.
A prática de agradecer a Deus após cada gol marcado
tornou-se uma constante especialmente nos atletas brasileiros. Mas o que de
fato isso diz do nosso atual futebol e sobre a nossa atual sociedade? Pois o
futebol sempre foi um termômetro e um indicador de nossa realidade tanto
metonímica quanto metaforicamente.
Neymar erguendo a taça da Champions 2015 |
A ascensão dos neopentecostais é sintomática na
sociedade brasileira e, como exemplo de sua irradiação no universo do boleiro,
o jogador Neymar é devoto da Igreja Pentecostal de São Vicente, litoral
paulista, e o centroavante do Santos, Ricardo Oliveira, é pastor da Igreja
Assembleia de Deus. Os dois jogadores são titulares em suas equipes e são nomes
certos nas convocações de Dunga para a Seleção Brasileira.
Bom, a partir daqui tentarei limitar-me ao escopo do argumento central desse texto: a relação entre neopentecostalismo e eficiência técnica no arremedo, abrasileirado, da prática de um futebol à Europa, cujo símbolo, para mim, é o jogador Kaká. Com isso, não abarco os matizes da própria discussão, deixando, por certo, para uma reflexão futura de maior fôlego. Por exemplo: tentar traçar o fio da ênfase no vigor físico na formação e na preparação dos nossos atletas que vêm, talvez, desde a hegemonia de C. A. Parreira - preparador físico da Seleção Brasileira de 1970 - até os dias atuais com a preferência, por parte dos cartolas, dos atletas formados na base dos clubes. Pois, com isso, evita-se os "vícios" do jogador oriundo da várzea, estes que supostamente criam problemas dentro e fora de campo.
Bom, a partir daqui tentarei limitar-me ao escopo do argumento central desse texto: a relação entre neopentecostalismo e eficiência técnica no arremedo, abrasileirado, da prática de um futebol à Europa, cujo símbolo, para mim, é o jogador Kaká. Com isso, não abarco os matizes da própria discussão, deixando, por certo, para uma reflexão futura de maior fôlego. Por exemplo: tentar traçar o fio da ênfase no vigor físico na formação e na preparação dos nossos atletas que vêm, talvez, desde a hegemonia de C. A. Parreira - preparador físico da Seleção Brasileira de 1970 - até os dias atuais com a preferência, por parte dos cartolas, dos atletas formados na base dos clubes. Pois, com isso, evita-se os "vícios" do jogador oriundo da várzea, estes que supostamente criam problemas dentro e fora de campo.
A Ética Protestante e o Espírito do Boleiro Brasileiro:
Se há uma hegemonia nos gestos de comemoração de gol no futebol brasileiro ela não é à toa. Essa hegemonia reflete uma aguda crise de narrativa de visão de mundo em nossa sociedade. E na terra-assada das ideologias políticas deixadas pelo pragmatismo de coalisão do PT, e também pela cooptação, pela Direita, das Jornadas de Junho (2013), a Teologia surge como a grande narrativa redentora que dá coesão e coerência para grandes grupos populacionais em nosso país, e os atletas de futebol também seguiram no mesmo diapasão. Muitos desses, oriundos de famílias e grupos sociais onde a religião é o único ordenamento na vida prática, pois no vácuo da presença estatal, dos sindicatos, das ONGs e outros grupos do terceiro setor, faz com que a Teologia torne-se a cosmovisão infalível da vida.
Se há uma hegemonia nos gestos de comemoração de gol no futebol brasileiro ela não é à toa. Essa hegemonia reflete uma aguda crise de narrativa de visão de mundo em nossa sociedade. E na terra-assada das ideologias políticas deixadas pelo pragmatismo de coalisão do PT, e também pela cooptação, pela Direita, das Jornadas de Junho (2013), a Teologia surge como a grande narrativa redentora que dá coesão e coerência para grandes grupos populacionais em nosso país, e os atletas de futebol também seguiram no mesmo diapasão. Muitos desses, oriundos de famílias e grupos sociais onde a religião é o único ordenamento na vida prática, pois no vácuo da presença estatal, dos sindicatos, das ONGs e outros grupos do terceiro setor, faz com que a Teologia torne-se a cosmovisão infalível da vida.
R. Oliveira comemorando gol com os jogadores do Santos |
Basta lembrarmos que o último grande movimento
organizado pelos jogadores brasileiros foi o Bom Senso FC, surgido no
cabalístico ano de 2013. Não podemos desdenhar o grau de positividade, para os atletas brasileiros, desse movimento, aqueles, até então, explorados pela arbitrariedade do calendário Globo-CBF. Esse movimento espontâneo dos jogadores visava
discutir e reivindicar melhores condições de trabalho para a categoria. Uma vez
atingido o objetivo de: 30 dias de férias mais 30 de pré-temporada, o movimento
arrefeceu. Talvez esse pragmatismo de circunstância, em nossa política
partidária, seja uma triste herança que também fez morada no universo do
boleiro.
Jogadores encampando a campanha do Bom Senso F.C |
Bem sabemos que há uma “plasticidade” nos interstícios
da cultura brasileira e a religião não está isenta dessa nossa particularidade.
A “plasticidade” é um conceito trazido por Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, e fala sobre
a capacidade do português em adaptar-se a quaisquer circunstância, seja ela
natural ou antrópica, o que, por conseguinte, herdamos dos lusitanos.
Notícias apontam que o protestantismo praticado por
nossos jogadores de futebol é prenhe de “plasticidade”. Parece que o
neopentecostalismo praticado por este segmento não tem aquele “ascetismo
intramundano” de que nos fala Max Weber, aquela conduta pessoal que não abre
margem para fora do pietismo. Isto é, o protestantismo aqui é praticado com um
pé na ideologia do “bem-sucedido” e com outro no desvio da norma, seja ela
civil ou religiosa. Basta vermos o conjunto de jogadores que têm filhos fora do casamento, que compraram CNHs falsificadas, que sonegam impostos, mas que confessam publicamente adesões a credos de
orientação cristã, seja em entrevistas, redes sociais ou sobretudo nas
comemorações dos gols. O que mostra a incapacidade dos nossos boleiros levaram
pra dentro e fora de campo a “ética protestante”, nisso, a nossa “plasticidade”
futebolística à Europa, falhou, como veremos mais à frente.
Parece um delírio o que vou falar agora, mas sugiro a
vocês acompanharem os treinos e os campeonatos de futebol de base dos times
profissionais, o que eu fiz em 2009, em pesquisa para a universidade, para ter
uma ideia do que irei dizer. Não foram apenas as comemorações de gols que se
homogeneizaram em nossos gramados, o nosso jeito de jogar também. Há uma
rigidez em nossas equipes. Parece que estamos há uma década de atraso em
relação ao futebol praticado na Europa hoje. Isso porque encalacramos nossa
“plasticidade” futebolística num arremedo canhestro ao tentarmos plasmar o
estilo de futebol à Europa: baseado na eficiência tática e no vigor físico,
como fim em si mesmo, na formação dos nosso atletas. Negligenciando, com isso,
nossas características históricas: futebol pautado na técnica, vocação
ofensiva, improviso, e no paradoxal individualismo-coletivo do nosso futebol
“arte”, “moleque”, “irresponsável” etc.
Inúmeros jogadores brasileiros com potencial ofensivo
tiveram seu futebol torturado para jogar nesse arremedo do futebol técnico com eficiência
tática, talvez o meio campista Oscar (descendente direto de Kaká) seja o grande
exemplo disso que estou falando. Torturamos o jeito de jogar de nossas bases
como se fosse um leito de Procustus de um falso “ascetismo” futebolístico,
assinalado na contrição da liberdade operada pela ideologia do “bom-mocismo”, e
da eficiência tática das “duas linhas de 4”. Não estou aqui fazendo uma
apologia à malandragem ou professando um ato de fé à era romântica do nosso
futebol “arte”, longe disso, reivindico, isso sim, a des-homogeneização da
formação de nossos jogadores que está representada no cacoete da comemoração:
“graças a Deus”.
Às vezes fico me perguntando, ao assistir os jogos dos
estaduais e do Brasileirão, se desaprendemos a jogar futebol. Nossos jogos são
medonhos de ser ver. Partidas com bombão, ligações diretas, equipes desarticuladas,
inúmeras faltas etc., tudo indica que o arremedo da eficiência tática de uma
“ética protestante” à Europa materializou-se após a hegemonia dos treinadores
gaúchos: Felipão, Dunga, Mano, Tite... Outrossim após a Copa do Mundo de 2002
com sua ênfase no futebol pegado na base do 3-5-2, e por fim no futebol do
“somar a qualquer custo” do modelo pontos corridos a partir de 2003, este
consolidado no pragmatismo de Muricy Ramalho.
Não esquecer a falaciosa ideologia da "família Scolari" que veio de roldão durante a Copa de 2002, junto com o pagode "Deixa a vida me levar" de Zeca Pagodinho. Dois exemplos permeáveis à nossa "plasticidade" neopentecostal, de um lado: o tradicionalismo da cultura brasileira com seu apelo à família. Doutro, a crença ingênua do self-made man em meio às adversidade, do pagode: "Só posso levantar as mãos pro céu/ Agradecer e ser fiel/ Ao destino que Deus me deu/ Se não tenho tudo que preciso/ Com o que tenho, vivo/ De mansinho lá vou eu".
Não esquecer a falaciosa ideologia da "família Scolari" que veio de roldão durante a Copa de 2002, junto com o pagode "Deixa a vida me levar" de Zeca Pagodinho. Dois exemplos permeáveis à nossa "plasticidade" neopentecostal, de um lado: o tradicionalismo da cultura brasileira com seu apelo à família. Doutro, a crença ingênua do self-made man em meio às adversidade, do pagode: "Só posso levantar as mãos pro céu/ Agradecer e ser fiel/ Ao destino que Deus me deu/ Se não tenho tudo que preciso/ Com o que tenho, vivo/ De mansinho lá vou eu".
Notem que nossos times e nossa Seleção estão
desaprendendo a jogar mata-mata, basta observarmos a queda nos títulos da Copa
Libertadores e nos últimos fracassos em Copa do Mundo. Talvez o grande
indicador disso seja o esquema dos pontos corridos, hegemônico nos campeonatos
nacionais na Europa e no nosso, até nisso fizemos um arremedo mal feito. Os
campeonatos que mais rendem emoções e melhores partidas são a Copa do Brasil e
a Libertadores. O mata-mata privilegia nosso jeito de jogar futebol:
dionisíaco-poético; o ponto corrido é europeu, apolíneo-prosaico.
Kaká comemorando a vitória do Milan. Na camisa: "Eu pertenço a Jesus" |
Nossos jogadores, paradoxalmente, são mais "brasileiros"
jogando na Europa do que aqui. Talvez porque lá eles tenham mais liberdade de
atuação tendo em vista que a eficiência tática seja um direito adquirido, e não
uma ideologia subserviente como quis e fez Scolari com a Seleção de 2014.
Por fim, dois jogadores representam o ponto nevrálgico
da mudança de orientação do futebol brasileiro, eles são da mesma safra:
Ronaldinho Gaúcho e Kaká. Ronaldinho foi achincalhado, muito também pelo
arrivismo do irmão-empresário, dentro e fora dos gramados, por praticar um
futebol mais livre do arremedo da eficiência tática do nosso jogo e, talvez por
isso, não enquadrou-se no futebol de marcação-eficiência do axioma “a bola
pune”, a partir da segunda metade dos anos 2000. Enquanto Kaká foi mais longevo
porque seu futebol permitia um diálogo com a ideologia da eficiência tática-comportamental
dentro e fora dos campos. Intuo que o nosso futebol ficará ainda um bom tempo
sob o signo de Kaká: o “bom-mocismo” revestido de “infiltrações” no corpo,
futebol de arremedo inócuo e de mãos pro céu.
É um trabalho complicado unir essa nossa tradição dionísica inventada, com um investimento pesado na base e com uma boa administração. A questão é, comparando com o que foi feito na Alemanha, nós não temos um "projeto" para o nosso futebol. Parece que ano passado, no auge da crise da CBF, era o momento para destronar esses cartolas e tentar algo novo, mas foi perdido.
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