Que horas ela volta? a luta de classes ao gosto do Projac
por RENATO K. SILVA
Costumo
dizer que o Brasil não é o país do futebol, mas sim o da telenovela, porque o
nobre esporte bretão só é transmitido, nos dias de semana, após o produto de
excelência da Rede Globo.
Dito
esta premissa, vou falar do filme que extrapolou o pequeno circuito
cinematográfico brasileiro e ganhou às redes sociais, às ruas e transbordou os cadernos
de cultura dos jornais – Que horas ela
volta? (Anna Muylaert, 2015).
Antes,
cabe frisar que não tenho nada contra o gênero da telenovela. Muitas vezes
apontado como um segmento “menor” do audiovisual pelos críticos, sobretudo os
acadêmicos que desconhecem o Brasil “profundo” apresentado pelas novelas da
Rede Globo. O que me incomoda nas telenovelas é que, em sua grande maioria,
elas sonegam do espectador uma maior problematização das personagens e enredos
para além do dualismo entre: mocinho vs. vilão.
Assisti
Que horas ela volta? no Cinema do
Museu, no bairro de Casa Forte, Recife, em sessão lotada numa tarde de sábado. Após
o fim do filme, percebi o semblante descarregado dos espectadores, um clima de
êxtase e efusão. Mais ou menos igual ao que temos quando saímos de um estádio
após uma convincente vitória de nosso time do peito.
Entretanto,
comecei a desconfiar daquilo que acabara de ver. Uma ruga de desconfiança e
criticismo começou a crescer dentro de mim. Segue então algumas de minhas inquietações sobre o filme.
Que horas ela volta?
narra a história de uma família rentista do Morumbi (bairro de classe média
alta de São Paulo) nucleada por pai, mãe, filho, empregada fixa (que “mora no
serviço”) e um cachorro. Nos moldes das produções da Globo Filmes – que inclusive assina a coprodução do longa-metragem.
O
filme começa com um plano-aberto pegando a piscina da casa do Morumbi onde
encontram-se uma criança e uma mulher. Em seguida, num corte temporal/elíptico
de dez anos, descobrimos que a criança é Fabinho (Michel Joelsas) e a mulher é
a empregada da família, Val (Regina Casé). E a pergunta que a criança faz na
cena anterior para a empregada: que horas ela volta? É para saber o horário de
regresso do trabalho da mãe/patroa Bárbara (Karine Teles). Por fim, compõe o
quadro doméstico o diletante artista plástico em “eterno estado sabático”,
Carlos (Lourenço Mutarelli) pai de Fabinho e marido de Bárbara.
O
núcleo familiar vivendo em perfeita harmonia é sacudido com a vinda, direto de
Pernambuco, de Jéssica (Camila Márdila) filha de Val, para passar uns dias na
casa do Morumbi, pois fará o vestibular da Fuvest – arquitetura na FAU-USP. Tendo em vista que sua mãe, Val, "mora no serviço".
Jéssica
não é apenas uma adolescente nordestina pela primeira vez na capital paulista, ela
traz a tiracolo além de um relativo capital escolar: uma empáfia comportamental
típica de uma geração que cresceu na euforia econômica, com ênfase no consumo
de bens e serviços, dos anos Lula/Dilma. E é essa empáfia que lhe concederá
acesso a cômodos e regalias até então destinadas às visitas da casa, e não para
a filha da empregada que “não sabe qual é o seu lugar”.
Com
a empáfia de Jéssica no interior da narração, o filme gera um grande
desconforto na plateia porque instaura-se um forte contraste com a submissão de
sua mãe, a empregada Val que, começa a ter uma confusa relação com a filha/hóspede?
Nesta
toada, Jéssica começa a embaralhar os papéis sociais até então rígidos na
economia financeira e emocional da casa do Morumbi. Com isso, a empáfia de
Jéssica – tomar o sorvete do patrão, entrar na piscina e dormir no quarto de
hóspedes – começa aos poucos a ganhar o coração e a vontade de Val. Mesmo que
sua revolta fique localizada no furto de um conjunto de xícaras que havia presenteado
a patroa dias atrás, e de chapinhar em uma piscina quase seca que nunca entrara
em dez anos de serviços prestados na residência, em condições precárias de
trabalho.
Em
resumo, Jéssica representa o “fim” da reprodução social (filho de peixe,
peixinho é). Pus a palavra “fim”
entre aspas porque Jéssica reproduz a condição de mãe solteira desterrada como
fora o caso de sua mãe, Val. Negando-se a uma postura subserviente tal qual sua
mãe, Jéssica é um exemplo de que o país mudou. O filho do pobre agora pode
estudar na faculdade onde estuda o filho do patrão da mãe. O filho do pobre
agora pode viajar de avião. O filho do pobre agora... E outras aquisições
sociais do Lulismo.
Agora,
Que horas ela volta? pinta um
perigoso quadro de meritocracia quando assinala a saída pela educação. Ou seja,
o “fim” da reprodução social é apontada pelo iminente sucesso de Jéssica no
vestibular. E o perigo nesta forma de discurso está justamente em ver a
educação como panaceia das mazelas sociais brasileira como se, mecanicamente,
dando acesso à educação para os filhos dos pobres, a desigualdade brasileira diminuísse.
Numa sociedade de classes, educação sem distribuição de renda é como tapar o
sol da desigualdade com a falaciosa peneira da meritocracia.
Com
o final esfuziante do longa duas coisas passaram, até onde pude acompanhar no
debate sobre o filme, ao largo da discussão: o assédio sexual de Carlos perante
Jéssica e a omissão dos direitos trabalhistas que Val nem esboçou reivindicar
quando pediu demissão do emprego. Acredito que são duas pautas que não deveriam
passar ilesas na narrativa do filme.
Que horas ela volta? me
fez lembrar o filme Casa Grande[1]
(Fellipe Barbosa, 2014), com um porém: Casa
Grande é a visão do patrão sobre os empregados a partir do olhar da classe
média (realizadores). E o filme da Anna Muylaert é o contrário: é a visão dos
empregado(s) sobre os patrões a partir do olhar da classe média (realizadores).
Neste
sentido, o filme do Fellipe Barbosa conseguiu fazer um exercício de alteridade
mais franco e sincero. Já o da A. Muylaert perdeu a oportunidade de ser mais contundente
porque optou por recursos narrativos típicos da telenovela brasileira: ênfase no star system carismático (Regina Casé); maniqueísmo
na elaboração dos personagens como Bárbara (espécie de mãe/madrasta que pratica
“barbaridades” com os subalternos); além dos tradicionais clichês sobre os
gostos de classe, o barroquismo extravagante de Val vs. o minimalismo
requintado dos patrões.
Em
suma, Que horas ela volta? tem o
sabor da luta de classes ao gosto das produções do Projac, doce. Talvez por
isso o filme tenha conquistado ótima recepção do público que, familiarizado com
a teledramaturgia, viu a televisão investindo na linguagem cinematográfica,
aliás, é um dos mais recentes empreendimentos da Globo não só por meio do seu
produto por excelência, as novelas, como também a partir de sua produtora,
Globo Filmes. Desta maneira, o filme da A. Muylaert perdeu a oportunidade de radicalizar a problemática que aborda, as relações de classe, dentro do muitas vezes insipiente cinema comercial brasileiro, porque optou ficar na zona de conforto da linguagem televisiva.
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Escritor e doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.
[1] Para mais detalhes sobre este filme, conferir: http://foihoje.blogspot.com.br/2015/10/cronica-de-uma-casa-grande-assassinada.html
Acesso em: 10 de out. 2015.
Essa análise que fazes do filme "Que horas ela volta?" me ajudou a entender o incômodo que senti ao assisti-lo. Creio ter sido o tom próximo da essência novelística que me fez não achar a película tão boa. Em alguns momentos achei-o enfadonho até. Realmente "Casa grande", para mim foi uma surpresa bem melhor, apesar de que este poderia ter sido mais profundo também. Mas valeu afinal de contas!
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